domingo, 11 de novembro de 2012

Cartilha Olímpica


Por Jornal O Globo

Achei este texto muito interessante. Vale a pena conferir, para dar uma arejada no clima tenso e apressado do nosso dia a dia. 

Em 2008, ano dos Jogos Olímpicos de Pequim, as autoridades locais divulgaram uma cartilha de bons modos para suavizar o choque cultural entre os habitantes e os visitantes. Assim, costumes arraigados na China, como escarrar no chão, furar fila ou comprar produtos piratas foram desencorajados, sob pena de pequenas multas.
Em 2012, não houve necessidade de nada similar na quase sempre ordeira Londres. Agora, levando-se em conta que a bandeira olímpica já está em nossas mãos, literalmente e contra a determinação do COI, talvez possamos ir adiantando alguns itens para a cartilha carioca de 2016, muito parecida com uma cartilha brasileira de 2014.
Cabe reconhecer que não é “de hoje”, com Pan, Olimpíadas, grana e mais segurança, que o carioca se tem em alta conta. Nem as décadas em que o Rio viu-se transformado na Geni do Brasil — alvo de bosta no resto do país — conseguiram abafar sua autoestima. A cartilha, então, terá de ser redigida numa linguagem que ele entenda.
Aí vai a contribuição de um carioca da gema dotado de simancol.
Fale baixo, por favor.
Em muitas culturas, por incrível que pareça, falar baixo é uma maneira de externar respeito pelo próximo, de não invadir o seu “espaço”. Nelas, não se entende que falar mais alto do que quem falou antes, e assim sucessivamente, é uma maneira criativa de sinalizar o entusiasmo que a conversa nos desperta. O ápice de qualquer noite, em qualquer boteco do Rio, é quando todos, em todas as mesas, berram e ficam roucos ao mesmo tempo. Ninguém consegue mais conversar, certo, mas esse nunca foi o ponto. Não se pode esperar, porém, que visitantes de cidades silenciosas, como Nápoles, captem o espírito da coisa nas parcas duas semanas de Jogos Olímpicos. Portanto, ostentemos nossa humildade e deixemos os outros falarem.
As leis de trânsito são iguais para todos, inclusive pedestres e ciclistas
. No exterior não se consegue discernir uma hierarquia no tráfego, o que desorienta o turista carioca. O veículo maior e/ou mais caro não tem precedência sobre os outros. Quem está motorizado não tem direitos sobre quem está a pé. Ou seja, estranhamente, não vale a lei do mais forte. Em troca, quem está a pé não se materializa no meio da rua quando o sinal está aberto para os automóveis. Sim, em sociedades atrasadas, como a alemã ou a japonesa, motoristas e pedestres só avançam quando o sinal está verde para eles. São uns otários, claro, mas tentemos não chamar-lhes a atenção para isso em 2016. Vamos, também, fingir que enxergamos alguma distinção entre ciclovia e velódromo.
O freguês sempre tem razão.
Alguns povos simplórios são incapazes de compreender que nossa lendária simpatia substitui coisas caretas e conversadoras, tipo eficiência. Eles esperam, por exemplo, que seus pedidos no restaurante cheguem certos e no momento adequado para que todos os comensais de fato sejam comensais. Educados pelo atendimento dos call-centers de nossos bancos e telefônicas, já sabemos que o freguês é um encrenqueiro, com mania de pagar apenas por produto recebido. Em culturas distintas e inferiores, o freguês não sabe o seu lugar. É provável que um turista olímpico cometa descortesias indizíveis, como interromper a conversa de celular que a balconista está tendo com sua colega. Perdoai-o, Gedislaine, ele não sabe o que faz.
A rua não é o quintal da casa.
Estrangeiros não percebem o charme da grã-fina de Ipanema que estaciona o Land Rover, sai com a Louis Vuitton numa das mãos e a Coca-Cola na outra, tranca o carro e joga a lata no chão. Também não têm a bondade da mãe carioca dizendo para o filho apertado se aliviar ali mesmo — o que ele fez, coitado, dentro do vagão do metrô. Reprimidos, fazem as necessidades só em banheiros. Um povo pobre, como o holandês, ergue tapumes ao longo da sarjeta durante as festas da cerveja. Os foliões urinam ocultos, e a urina escoa para a bueiro. Depois, limpa-se a rua. Não há a sofisticação dos nossos banheiros químicos, que nunca são suficientes, mas movimentam a economia, escoando milhões para o bolso de quem vence a licitação.
O patrimônio público é público.
Assim como existem povos que escrevem e leem da direita para a esquerda, há povos que entendem tudo ao contrário na relação do cidadão com o Estado. Para 2016, devemos nos familiarizar com o seu pensamento primitivo. Se dizem “é público” querem dizer “de todos”, o contrário de nós que, queremos dizer ou “é privado” ou “de ninguém”. Em Paris, por exemplo, as obras em uma Cidade da Música prosseguiriam até que ela fosse entregue aos contribuintes, cassando-se ao prefeito o elementar direito de fazer política. Constatada malversação do dinheiro, seu antecessor iria em cana. São hábitos bárbaros, com certeza, mas devemos mostrar ao mundo a nossa superioridade olímpica.

E-mail: dapieve@oglobo.com.br

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